Contraponto simbólico

Por Santo Tito

O cotidiano, a todo momento, nos mostra situações que são exemplos dignificantes a serem seguidos. Porém a nossa percepção não se permite seguir. Essa reflexão é profunda e ressoa com uma verdade incômoda: muitas vezes, os arquétipos mais nobres passam despercebidos ou são ignorados não por falta de acesso, mas por uma espécie de cegueira voluntária — ou talvez por um cansaço da alma.

A pressa, o excesso de estímulos e a rotina nos anestesiam. O banal se sobrepõe ao essencial. Já vimos tantos maus exemplos que passamos a duvidar dos bons. A virtude parece ingênua num mundo cínico. Seguir um bom exemplo exige transformação — e mudar dói. É mais fácil permanecer na zona de conforto. Às vezes, não reconhecemos o valor de um bom exemplo porque ainda não desenvolvemos dentro de nós o que poderia ressoar com ele.

Antes de entrarmos no âmago da ideia a que queremos nos referir, vamos citar algumas poucas ações que criam constrangimentos e até acidentes: hoje mesmo um motociclista foi notícia ao ultrapassar um caminhão pela direita e atropelar um carro que estava estacionado; faixa de pedestre é uma sinalização que só permite o pedestre passar quando, a uma distância de um quilômetro em qualquer direção, não se visualizar qualquer tipo de artefato motorizado em movimento; estacionamento regular é feito para quem possui veículo produzido no ano de dois mil para trás; respeito ao meio ambiente existe só para quem mora na china; o tal de decibéis é uma escala logarítmica de uso proibido para maiores de dezoito anos; e assim por diante.

Essas frases têm uma força poética e reflexiva poderosa. Elas sugerem uma espécie de destino ou maldição que nos impede de seguir bons exemplos — como se estivéssemos presos a repetir erros ou ignorar modelos de virtude. Pode ser uma crítica à sociedade, à cultura, ou até a nós mesmos, dependendo do contexto.

Fazendo um contraponto ao que acabamos de nos referir e mudando o tom da conversa de forma encantadora, um fato interessante que presenciei lá no Recanto das Águas num desses finais de semana, foi a presença de Roberto Raimundo, um poeta quase mítico da cidade, irmão de Edilson da loja, num gesto exitoso demonstrando, como um lampejo de esperança, que nem tudo está perdido.

Numa maneira simples que já faz parte do seu cotidiano, como levar o filho para a escola com todo o seu material, nadar e brincar com ele tal qual dois meninos de mesma idade e temperamento, nesse dia ele inaugurou uma faceta que suplantou todas as ações anteriores. Sempre de olho no seu Rei, à sombra de uma árvore, próximo a água da barragem, armou uma mesa com sete cadeiras, chamou todos os meninos com quem seu descendente gastava suas energias, e sem olhar quem eram seus amiguinhos pediu ao garçom que lhes servissem um prato bem substancioso do cardápio do Recanto das Águas. Sob os olhos de Roberto, pratos limpos, para a água que os esperava voltaram.

O cotidiano, que antes parecia nos cegar para os bons exemplos, de repente se revela fértil — e nos surpreende com gestos que iluminam. Quando alguém que carrega a sensibilidade da poesia se envolve em ações concretas, há uma espécie de reconciliação entre o ideal e o real. É como se o exemplo finalmente encontrasse eco. Se o mundo nos ensina a ignorar os exemplos, há sempre alguém — discreto, quase esquecido — que os encarna com beleza e eficácia. E quando o exemplo se faz carne, o cotidiano se redime.

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