Por Silvério Alves Filho

Esses dias conversei com um amigo evangélico sobre o amor de Deus. Hoje, encontra-se muito bem, mas há alguns anos ele passou por um estado de psicose (dissociação da realidade), fruto de uma enfermidade. Na época, praticou condutas consideradas como pecado para o cristianismo. Mas, nessas circunstâncias, teria ele pecado? Começamos a debater.

Para os judeus, o pecado era puramente objetivo: havia uma regra, e quem a descumprisse era pecador, independentemente das suas intenções ou circunstâncias.

Por exemplo, para os judeus, comer carne de porco era sempre pecado. Mas para quem seria mais fácil cumprir esta lei: para aquele que, em razão do dinheiro, tem diversos outros tipos de carne à sua disposição, ou para aquele que não tem nenhuma? Para aquele que conhecia a Lei ou para aquele que não a conhecia? Para o saciado ou para o faminto?

Com Cristo, os aspectos subjetivos e circunstanciais passaram a ter importância. Isso é claro em diversas passagens.

Em Lucas 12,47-48, por exemplo, Jesus explica, por parábola, que a consciência sobre a ilicitude da conduta influencia na gravidade do pecado: se eu sei que é pecado e faço, meu pecado é mais grave do que aquele que faz sem a consciência de que é errado.

A diferença do entendimento de Cristo para o dos judeus é ainda mais claro em Lucas 6.

Segundo a Lei, era pecado colher espigas no sábado. Mas os discípulos estavam colhendo. E os judeus, hipócritas, então contestam a Cristo. O Senhor, porém, justifica que os discípulos estavam com fome, e cita o exemplo do Rei Davi, o qual, pelo mesmo motivo, alimentou-se de comidas destinadas apenas aos sacerdotes.

A fome, uma circunstância biológica vivenciada pelos discípulos, afastou deles o pecado, embora a conduta fosse contrária à Lei. Há mais de 2000 anos, Cristo criou o que hoje chamamos no Direito Penal de “exclusão de ilicitude pelo estado de necessidade”.

Mas e no caso de quem está em psicose, dissociado da realidade?

Em estado de psicose, motivado por uma enfermidade (esquizofrenia, transtorno bipolar etc), o doente não compreende o que faz, nem o motivo pelo qual faz. Aqui, a questão é até mais séria do que a do servo que não sabe da lei, do qual falei acima (Lc, 12,47-48). Na parábola o servo não sabe; aqui, o doente não tem sequer capacidade de saber, em razão da doença.

Quem está em psicose não tem culpa da circunstância que possui. Nasceu com ela. Logo, seria injusto se fosse tratado do mesmo modo de quem tem compreensão da realidade.

Sim, Deus é perfeitamente justo (Dt 32, 4, Sl 9,8). A justiça na Bíblia é sempre tratada como um atributo exercido com perfeição por Deus. Já o amor, para além de atributo, é relatado como essência divina: Deus É amor (I Jo 4,8). A essência do amor guia a aplicação da Justiça. Cristo deixa claro.

Findando o debate com meu amigo, chegamos ambos à conclusão de que a psicose afasta o pecado da conduta, assim como a fome afastou o pecado dos discípulos em Lc 6. E isso ocorre em razão do soberano exercício misericordioso da Justiça de Deus, fundamentada no amor.

Afinal, o maior ato de Justiça de Deus em face dos pecados da humanidade (Rm 3,25-26) foi, ao mesmo tempo, a mais perfeita expressão do seu amor: o sacrifício do Seu Filho na Cruz (João 3,16-17).

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