Recebemos do nosso amigo de longas datas, jornalista José Alves, editor do Blog o Alerta, o artigo “Meu amigo e Santo Expedito de São Paulo do Potengi”, escrito pelo escritor, pesquisador e folclorista Gutemberg Costa, publicado no Alerta neste domingo (27). Vale a pena ler.

“Hoje, vou lembrar de alguns santos e aviso que aqui em casa, os mesmos já estão canonizados há muito tempo. Começo com dois padres e santos. João Maria e Expedito. Um saiu de Caicó e veio ser santo em Natal, já o outro saiu de São Rafael e foi ser santo em São Paulo do Potengi. Ninguém é santo em sua terra mesmo! Um é do tempo de minha avó e o outro, do meu.

O saudoso Monsenhor Expedito Sobral de Medeiros foi uma das minhas grandes amizades. Sua modesta e abençoada casa era uma espécie de refúgio para meus feriados e até férias. Chegava lá com meus livros ainda para revisar os originais. Projetos e rascunhos precisando fugir da Natal tão agitada. Era recebido com seu sorriso amigo. Entrava com minha pequena máquina datilográfica portátil na bagagem. Um luxo para a época. Ele colocava uma rede, uma mesa a disposição e cafezinho de vez em quando deixado pela bondosa dona Alba. Cenário de um verdadeiro paraíso!

Ninguém podia conversar comigo para não atrapalhar minhas leituras e anotações. Respeitava minha preferência ecumênica e eu respeitava e o acompanhava em suas missas. Ria muito quando eu dizia que – casa de padre, missa com eleCasa de pai de santo, na gira com ele. Nunca me questionou porque eu não entrava na fila da comunhão e não rezava o credo católico. Se eu tivesse que rezá-lo, faria assim democraticamente: creio nas santas igrejas. Todas santas, sem discriminações e privilégios. Da Católica a Umbanda! Com certeza, tive o seu perdão para os meus muitos questionamentos religiosos…

O santo Expedito levou-me as casas de algumas rezadeiras, suas amigas e beatas, quando estava pesquisando: “Amigo Gutenberg, essas pobres mulheres que rezam a todos, sem interesse financeiro, são umas santas. Elas têm mais fé do que cem padres reunidos”. Quando o mesmo partiu, fui lá baqueado e choroso deixar meu pranto presencial e na volta preparei um pequeno texto, imediatamente publicado por outro grande amigo de Mossoró, o Vingt Un Rosado (1920-2005).  Seus familiares gostaram tanto do meu relato vindo do coração, que o leram na missa em Natal, na tradicional Igreja do Galo, da Cidade Alta. Minha amiga Vera Medeiros, irmã do santo Expedito de São Paulo do Potengi, cada vez que me vê comenta sobre essa emotiva quase crônica.

Tenho histórias presenciadas na casa do amigo santo Expedito, as quais dariam para encher um volumoso livro. Aqui por falta de espaço vou enumerar algumas das mais engraçadas e santas que eu vi e ouvi. Uma fervorosa beata da região foi lhe perguntar e ficou envergonhada, se confessando baixinho, mas deu para escutar muito bem o seu pecado em segredo: “Meu padrinho, eu soltei uma grande bufa na missa. Não teve jeito de segurar a presepada, viu!”. Expedito Sobral de Medeiros, padre velho e experiente com suas beatas, piscando o olho pra meu lado, se fazendo de muito sério para não cairmos em gargalhadas, lhe aconselha e perdoa assim: “Está perdoada, minha filha, Deus sabe a intenção de cada um de nós. Agora, se for soltar novamente daquelas muito fedorentas, corra para a frente da Igreja. Vá pra calçada, pelo amor de Deus”. Presenciei uma vez este tentando convencer, a sua maneira, um pai para não tirar o seu filho da escola rural e, ao final de tantos argumentos, cair na risada para meu lado com a argumentação simplória e verdadeira dada pelo genitor do estudante: “Olhe, meu padrinho monsenhor Expedito, esse menino é tão desarnado, que é ele quem tá ensinando a prefessora. Ela não sabe mais inventar lição pra esse capeta não…”.

Um domingo, tomando o seu café da manhã, esse me adiantou num rompante o tema do sermão que ia fazer dedicado especialmente as ditas fofoqueiras, as quais viviam comungando e andando com ar de puras santas. E eu fiz carreira atrás do santo padre meu amigo. Na hora de sua prelação, o calejado religioso só faltou excomungar as fofoqueiras de plantão daquela missa dominical: “Vocês sabiam que é o diabo quem recebe com alegria quem vive da fofoca e do boato maldoso e falso. Aquelas que botam até o tamborete no muro da vizinha para fofocar, deixando as panelas queimando o almoço? Essas são recebidas no inferno ao rojão de foguetões. Elas ficam noticiando as separações e erros dos outros. Bem que dizem que macaco não olha pra o rabo sujo que tem. Fiquem sabendo que não existe pecados maiores do mundo do que a fofoca e o fuxico”. São, literalmente, irmãos gêmeos da maldade na boca do povo…

Nem precisa contar-lhes o constrangimento e medo entre os presentes que eu vi na referida celebração religiosa. Até os homens ficaram nervosos. E dizem nas feiras que homem fofoqueiro é imagem do cão! Sentado num banco da Igreja de São Paulo do Potengi, bem atrás, percebia muito bem as cotoveladas entre algumas das beatas, como quem dizendo umas para as outras: eu nunca fofoquei na minha vida. Juro por tudo quanto é sagrado que nunca falei da vida alheia. Santa Luzia que me cegue… um raio me parta. Foi um Deus nos acuda! O velho santo Expedito pisou em cima da ferida com sua coragem de sempre. E dizem que só os loucos e os santos são os que têm coragem suficientemente para enfrentar tudo. Naquela manhã aconteceu o dia de maior contrição e comunhão de hóstias que meus olhos já viram até hoje. A fofoca foi perdoada de vez!

Neste dia na hora do almoço, Monsenhor Expedito, sertanejamente, rindo muito, me explica o seu polêmico sermão da sua missa da manhã daquele domingo: “Amigo Gutenberg Costa, é preciso falar do viver do povo e dá o tiro certo. Eu sei que é importante assuntos atuais, mas esse povo simples e humilde não ia me entender e todo o meu trabalho ia ficar no vazio. É necessário levar o rebanho com jeito, boa conversa e pão com café… quando esse povo chega na minha casa é recebido com café, cuscuz, bolachas. Com fome ninguém escuta e respeita ninguém…”. Está mais do que explicado os pães e peixes. Já diz o sábio povo que saco vazio não se põe em pé mesmo. Muita farofa não adianta sem carne. Muita conversa só enche linguiça. O nosso santo Expedito sabia com jeito e maestria levar o seu povo para o caminho certo. Depois dele, ninguém mais falou a língua daquele povo ali por aquelas bandas… 

E como santo não precisa de dinheiro, esse renunciou a própria herança dos pais. Recebeu de presente uma vez um objeto muito luxuoso e teve que o devolver com a desculpa de que em sua casa aquela coisa seria um disparate, um luxo aos olhos dos matutos que iam lhe abraçar todos os dias. Sua casa coube jarras, potes, redes. Simplicidade e caridade aos quatros cantos. Luxo e soberba, não! Sua igreja nunca teve a tabela de preços para serviços religiosos, como outras que vi e ainda vejo. Uma vez, estando em sua morada, ouvi o seguinte diálogo desse com um senhor que morava um pouco distante de São Paulo do Potengi e não conhecia as suas regras rígidas e únicas no clero potiguar de seu tempo: “Meu senhor, aqui não se paga casamento, batizado e nem missa. Quando o senhor vi lá dentro da igreja uma urna de madeira com um buraco em cima, coloque o que quiser naquela brecha e bem escondido de todo mundo, viu? Fique o senhor sabendo e Gutenberg aqui de testemunho, que meu pai quando me viu vestido numa batina preta me deu a regra de minha vida religiosa: – Expedito, meu filho, não vá fazer de sua igreja como bodega, cobrando o povo…”.

Já disse e repito que aqui no nosso RN, só tem dois santos. O padre João Maria, injustiçado e esquecido, que ainda não foi reconhecido por sua Igreja Católica, desde 1905; e o santo monsenhor Expedito do Potengi, o qual tive o privilégio de sua amizade e convivência durante anos. O vi e o ouvi de perto. Sou testemunho de sua santa simplicidade e extrema caridade humana, como nunca vi em outro padre até agora. Seus milagres foram em vida. Não precisa oficialidade e ritualística nenhuma, o nosso Rio Grande do Norte tem indiscutivelmente dois santos já canonizados pelo povo. Povo que eu respeito, que sabe muito bem quem prestou aqui e quem não prestou. Quem veio pra enganar como ‘santo de pau oco’, pergunte ao povo e não ao Vaticano. Chega de tantos purismos e hipocrisias. O tão longe Vaticano não, mas o povo aqui de pertinho, conhece de vista muito bem as artimanhas do dito diabo…”

 Gutenberg Costa – Escritor, pesquisador e folclorista.   A foto acima, Monsenhor Expedito e Gutemberg foi tirada em 1997.

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