Por Mário Sabino
Está claro que o advogado-geral da União, André Mendonça, sentiu-se impelido pelo chefe, Jair Bolsonaro, a manifestar-se, sem citar nomes, sobre a possibilidade de João Doria vir a decretar o confinamento no estado de São Paulo, na próxima semana. O governador de São Paulo aventou essa hipótese dias atrás, visto que a quarentena não está dando o resultado esperado — menos da metade da população do estado ficou realmente em casa, quando é necessário que ao menos 70% permaneça em isolamento social, para evitar a disseminação do coronavírus que causa a Covid-19.
Como publicamos, a nota de Mendonça diz que “como Advogado-Geral da União, defendo que qualquer medida deve ser respaldada na Constituição e capaz de garantir a ordem e a paz social. Medidas isoladas, prisões de cidadãos e restrições não fundamentadas em normas técnicas emitidas pelo Ministério da Saúde e pela Anvisa abrem caminho para o abuso e o arbítrio. Por fim, medidas de restrição devem ter fins preventivos e educativos – não repressivos, autoritários ou arbitrários.”
A nota casa-se bem com o discurso de Bolsonaro. Ele se escuda no seu direito constitucional de ir e vir, é ele mesmo quem diz, para dar mau exemplo aos cidadãos, como se a Covid-19 fosse um resfriadinho, uma gripezinha. O presidente vai para a rua e estimula aglomerações, como se viu hoje em Goiás, e partidários seus fazem o mesmo — neste sábado, eles interromperam o trânsito na Avenida Paulista, para gritar que “o coronavírus não existe” e “fora Doria”. Bolsonaro e os seus sequazes criam, assim, um caldo político para que medidas restritivas tomadas por governadores, especialmente o de São Paulo, sejam vistas como ameaça, não apenas à economia, mas à democracia e às suas liberdades fundamentais. Tal é a intenção do presidente com as suas saidinhas, obviamente.
A menos que se considere Austrália, Nova Zelândia, Itália, França, Reino Unido e Estados Unidos países com regimes autoritários, é uma besteira imaginar que a democracia está ameaçada pela decretação de um confinamento que visa a preservar não apenas a vida de cada indivíduo, mas as de todos os cidadãos, em meio à calamidade pública decretada, aliás, pelo governo federal. Se a calamidade pública permite ao presidente fazer um “orçamento de guerra”, e contornar desse modo a Lei de Responsabilidade Fiscal, é evidente que também consente restringir a locomoção das pessoas na medida necessária a impedir que a epidemia se expanda para além da capacidade de atendimento do sistema de saúde. Guerra é guerra.
A estratégia de dar contornos autoritários à decretação de um confinamento em São Paulo ou qualquer outro estado brasileiro irá parar no STF, como aponta a nota do advogado-geral da União — e, no Supremo Tribunal Federal, essa estratégia não vingará, ao que tudo indica. Ministros já se manifestaram verbalmente sobre o fato de que se pode, sim, tomar medidas restritivas mais duras em prol do bem comum. E Alexandre de Moraes, na semana passada, concedeu parcialmente uma liminar na qual afirma que não compete ao Executivo anular unilateralmente as decisões dos governos estaduais que determinem restrição de atividades e circulação de pessoas no contexto da pandemia. Antes de Moraes, Marco Aurélio Mello, sem que isso fira a Constituição Federal. Proteger a saúde das pessoas e da sociedade vai ao encontro de premissas constitucionais. Se há calamidade pública nacional, por óbvio há calamidades públicas estaduais e municipais.
A semana que entra deverá marcar o início da batalha jurídica no STF, no caso de um governador vir a determinar o confinamento — batalha na qual está em jogo a vida de milhares de brasileiros. Os interesses políticos não podem prevalecer num momento como este, que deveria ser de união de um país prestes a ser engolido pelo coronavírus. Nesta guerra, só há um grande inimigo, e a batalha é contra ele.
Mário Sabino é jornalista e escritor. Escreve para o Antagonista.