Por @silverioalvesfilho

Um dos grandes debates do Direito, desde milênios atrás, é a sua ligação com a Justiça. Tivemos muitas compreensões diferentes no decorrer da história: houve quem entendesse que o Direito emanava de Deus, dos princípios da razão, da “opressão da burguesia”, da moral, ou simplesmente de normas criadas pelo Estado, que deveriam ser cumpridas sem preocupação com a justiça.

Sou daqueles que acredita que o Direito é criado pelo Estado, sim, e deve efetivamente ser cumprido. Não existe paz sem Direito que a garanta.

Mas acredito também que o Estado, quando vai criar o Direito, deve ter em mente que as normas precisam estar a serviço da Justiça. Mais do que isso: mesmo após a criação, já no momento do cumprimento da lei, acredito que a Justiça deve ser buscada com bom senso, especialmente quando a lei é aplicada contra as parcelas mais vulneráveis da sociedade.

Esse dilema sobre Direito e Justiça é claramente visto na apreensão de motos de trabalhadores pobres, que não quitam as parcelas do veículo porque, de fato, não têm dinheiro.

De um lado, a Lei, que determina a apreensão, e os agentes da lei, os quais estão por ela obrigados a cumpri-la, especialmente os militares, sujeitos a um regime de disciplina e hierarquia, nos termos da constituição.

Do outro, os trabalhadores, especialmente os do interior, pobres, que utilizam veículos irregulares para garantir o direito constitucional ao transporte (art. 6º), muitas vezes para o sustento da família. Trabalhadores que vivem numa sociedade já de poucas oportunidades, poucas fontes de renda, onde o Estado, que deveria estar presente, comumente não está.

Trabalhadores que, com seus veículos irregulares nos termos da lei, arriscam a vida se locomovendo por estradas da morte.

Cumprir ou não cumprir a Lei? Eis uma boa questão.

Aos policiais, o cumprimento é um dever, sob pena de responsabilização administrativa e criminal. Não podem ser socialmente responsabilizados pelo cumprimento do dever a eles obrigatório.

O mesmo não vale para os governantes, deputados, prefeitos, vereadores, que, por outro lado, deveriam lutar efetivamente para que o direito, tão brando para os ricos, seja minimamente justo para os pobres.

Se um playboy, filho de ricaço, é pego numa lei seca e não faz o bafômetro, não vai nem preso. Paga uma multa, que para ele não faz nem cócegas. Porém, se, como presenciei hoje, um pobre trabalhador tem a moto apreendida, moto que usa para tentar ganhar a vida num comércio enfraquecido pela falta de incentivo, o peso da lei é infinitamente maior.

O pobre não tem advogado, não tem dinheiro para multa, não tem meios para recuperar o veículo. Não adianta a lei ser igual para todos em tese se é extremamente desigual na prática, em razão das injustiças históricas da nossa sociedade.

Cabe a nós lutar. Não lutar para que os agentes da lei deixem de cumpri-la. É obrigação deles fazer isso. Mas lutar para que quem tem o poder de mudar a Lei a mude. Lutar para que o direito seja efetivamente justo, numa sociedade extremamente injusta. Porque se o direito não é justo, não é direito, é instrumento de opressão.

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